O assunto é extremamente delicado. Mas não podemos desviar dele, afinal, é a vida de uma pessoa em formação que está em jogo. Chamamos de identidade de gênero a forma como a criança se percebe, a partir do momento que inicia sua interação com o mundo. É muito comum meninos brincarem com bonecas e objetos culturalmente do mundo feminino, e vice versa. Isso não tem nada a ver com gênero, porque a criança não tem clareza desta distinção. Mas com o passar dos anos, pode surgir uma afinidade maior com todo o universo do sexo oposto. Um menino que só se identifica com amigas, que quer ter cabelo comprido, usar maquiagens e se vestir como menina pode estar numa fase de experienciar as diferenças, ou mais do que isso, pode estar se percebendo não um homem, mas mulher, enquanto gênero.

MAS O QUE É SER HOMEM OU SER MULHER?

Pode parecer bizarro esse fato, mas se pararmos para pensar, o que definimos como “ser homem” ou “ser mulher” não tem nada a ver com cromossomos. São construções culturais, apenas.

No Egito Antigo, todos os homens usavam delineadores nos olhos por questão estética, raspavam o corpo todo e usavam peruca, para evitar piolhos. Na Europa, idade medieval, o homem nobre exibia seu status através de uma pele claríssima com muito ruge, peruca branca e comprida e ainda, um belo salto no sapato, moda copiada do Rei Luiz XV. Não, eles não eram drag queens. Eram da nobreza católica, a nata social.

Dito isso, fica mais fácil a gente entender que o jeito como nos vestimos ou interagimos socialmente não está ligado necessariamente com a orientação sexual.

Numa criança, por exemplo, os significantes ainda estão com seus significados em desenvolvimento. Então um menino brincar de usar o sapato da mãe pode estar para ele sendo mais uma aventura equilibrista que propriamente um desfile em passarela. Muitas vezes, o estopim do caos se dá por conta da visão preconceituosa dos pais, e não propriamente por uma situação real de conflito de gênero na criança.

Mas existem pessoas que ainda na primeira e segunda infância, começam a demonstrar afinidade com todos os ícones que pertencem ao sexo oposto. Nesta idade, já é possível aos pequenos fazerem uma leitura ainda que superficial, de que estão se relacionando com objeto de toda um universo que não é o que estão querendo pra ela. E mesmo assim, há uma insistência da criança, em sua busca pelo autoconhecimento. É nessas horas que os pais devem ficar atentos. Pois a medicina já reconhece não só jovens, mas crianças trans.

CRIANÇAS TRANS

Atualmente cerca de cinquenta estão sendo acompanhadas pelo Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero do Hospital das Clínicas da USP, em São Paulo, pioneiro no país na assistência e orientação a famílias com filhos trans. A questão é de tal relevância que em junho de 2017, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) lançou um manual para orientar pediatras sobre a disforia de gênero, definida como um “desconforto ou sofrimento causado por uma discrepância entre a identidade de gênero de uma pessoa e seu sexo atribuído no nascimento”.

Os especialistas defendem muita conversa, apoio e mente aberta. A criança não está emitindo uma opinião, está dizendo quem ela é, e precisa ser ouvida pelos pais.  A orientação é não tentar corrigir ou impor comportamentos, para que o pequeno não sinta que está desagradando aos pais e guarde para si a sua frustração. Pergunte como a criança se sente, porque se sente daquela maneira e trate tudo de maneira lúdica, sem que a situação ganhe peso negativo. Uma vez que os pais procuram ajuda, a família toda é acompanhada e a criança faz sessões periódicas com psicólogos e psiquiatras. No início da puberdade, elas podem optar pelo bloqueio hormonal, que impede o corpo de amadurecer até que os médicos e elas, principalmente, tenham certeza de que caminho seguirão.

O assunto foge completamente à simplificação. Um exemplo disso é que uma pessoa biologicamente fêmea, pode se identificar como homem e ainda assim ter atração predominante por homens. Ou seja, se identificar como homem ou mulher não tem a ver com atração sexual!

A percepção de que uma criança ou adolescente está se descobrindo com um gênero diferente ao seu sexo biológico é uma fase de difícil aceitação, tanto para o próprio indivíduo como para os familiares.

A psicoterapia colabora para que o indivíduo tenha o direito de superar o preconceito, se encontrar e ser feliz, independente da identidade de gênero ou orientação sexual.